"Vida de vagabundo"

Existe em Algés, não muito longo do lugar onde vivo, uma parede onde se pode ler, em letras mal desenhadas com spray, a seguinte frase: "O pensamento é nulo, vida de vagabundo". Li e fui investigar para descobrir que se trata de um pedaço da letra da canção "Pensamentos", dos brasileiros Tribo da Periferia [1]. No contexto da canção a frase aparece com sentido pejorativo, como crítica ao alienamento dos "vagabundos" face aos problemas que os rodeiam... O que me pergunto é se será mesmo assim; se a vida de vagabundo (de vadio, que é expressão bem mais portuguesa, e que aliás foi referida por diversas vezes como forma perfeitamente legítima de viver, segundo o professor Agostinho da Silva) equivale a pensamento nulo. Também me pergunto se "pensamento nulo" não será frequentemente um objectivo a que muitos se propõe e que poucos conseguem alcançar.

Ninguém como Chaplin interpretou nas artes representativas o papel do vagabundo ou do vadio enquanto ser dissociado de uma sociedade cada vez mais normalizada, estereotipada, regida por princípios uniformes e socialmente auditados de comportamento aceitável.

Nas suas obras, Chaplin apresentava ao seu público - aos públicos posteriores, atravessando gerações - a perspectiva da diferença como elemento enriquecedor de uma sociedade plural, democrática, aberta e respeitadora da liberdade e das diferentes formas de viver. Nos filmes de Chaplin o vagabundo aparece sempre não como um ser desprovido de pensamento, mas como alguém cujo pensamento foge à norma, ao padrão e, por isso mesmo, à compreensão daqueles com quem partilha espaço, tempo e circunstâncias. Os vagabundos de Chaplin não racionalizam a emoção nem emocionam a razão. São racionalidade emotiva, ou emoção racional, num mundo em que a produção humana-robotizada - em sentido restrito e lato - foi elevada ao estatuto de sacramento económico no altar do "crescimento" económico.

A questão impõe-se e importa não a varrer para debaixo do tapete: que equilíbrio existe nas vidas anti-vadias de clones normalizados em que nos vamos tornando?

O tempo é de individualismo importado e incentivado por doses massivas de influência norte-americana nos mil e um contextos da vida actual no velho continente. Creio que esse individualismo gera em cada um de nós uma percepção ilusória de individualidade - de diferença face ao outro (aos outros) - que na verdade anulamos diariamente sempre que nos conformamos a fazer fila "indiana" para passar o cartão que abrirá as portas de acesso ao "transporte público". E se um "vadio" tenta furar o sistema, juntando o seu corpo ao nosso quando as portas abrem, protestamos e apontamos a sua forma de vida como tudo aquilo que está mal no viver colectivo da nossa comunidade.

Normalizados. Estamos normalizados.
Cegos. Estamos cegos. "Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem", como escreveu Saramago no seu muito actual "Ensaio sobre a Cegueira".

Vida de vagabundo, pensamento diferente. Basta ver os filmes de Chaplin para o perceber de forma absolutamente cristalina.




Notas:
[1] "Pensamentos", Tribo da Periferia [ouvir].

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