Quando Pizarro chegou

Quando os Europeus que afirmam ter descoberto o continente americano chegaram às terras que chamaram "novo mundo" viviam já nelas cerca de cinquenta milhões de almas, da ponte gelada do sul continental aos territórios inóspitos do actual Canadá e Alasca.
Existem várias teses sobre a chegada dos primeiros humanos à América. Por mar ou a pé, através de uma faixa de terra seca que se estendia pelo actual estreito de Bering? As opiniões dividem-se, mas é absolutamente certo que a América não foi descoberta por Colombro, nem Pizarro, nem Álvares Cabral, pelos fenícios antes ou os Vikings mais tarde.
É todavia certo que Pizarro levou para o continente americano novidades que alteraram profundamente a vida dos povos originais da América. Em pouco mais de 100 anos, cerca de 85% das populações indígenas da América do Sul haviam desaparecido, vítimas de doenças como a gripe, a peste, o sarampo ou a varíola. Os sobreviventes foram submetidos pela força, passando a viver sob formas de organização política, económica, social, cultural e ambiental antagónicas àquelas que haviam desenvolvido ao longo de 10.000 anos. A principal alteração foi aquela que Daniel Quinn refere em "Beyond Civilization" como a grande diferença entre a vida "civilizada" e a vida tribal: "os alimentos passaram a estar fechados à chave", obrigando quem não está na posse da chave a submeter-se...
"Making food a commodity to be owned was one of the great innovations of our culture. No other culture in history has ever put food under lock and key - and putting it there is the cornerstone og our economy, for if the food wans't under lock and key, who would work? - Daniel Quinn

Terras comunitárias foram certo dia decretadas propriedade de alguém que posteriormente as vendeu, cedeu  ou legou em herança. E passadas umas quantas gerações já quase ninguém recordava que talhões maiores ou menores, cercados ou não, foram um dia propriedade de ninguém, nelas coexistindo pessoas, animais e expressões da natureza - bosques e rios, por exemplo - não submetidas à lógica do rendimento imediato.
As antigas religiões indígenas foram subjugadas e substituídas por um cristianismo totalmente estranho às suas tradições, e que funcionou sobretudo como território espiritual e doutrinário legitimador das novas imposições económicas e políticas dos novos senhores das vastas florestas, desertos, cumes gelados ou praias paradisíacas do Novo Mundo. E não obstante a oposição de muitos, incluindo de padres católicos, existe uma relação directa entre a nova religião imposta aos povos indígenas e a ideia da psicose "uética" descrita por Jack D. Forbes na obra "Colombo e outros canibais" (Antígona).
"No que diz respeito ao baptismo dos índios e dos negros, algumas pessoas [brancas] desaprovam-no, dizendo que isso os torna muitas vezes orgulhosos e menos aptos para servirem como criados; mas estas e outras objecções são facilmente refutáveis [...] porque o cristianismo encoraja-os, ordenando-lhes que se tornem mais humildes e melhores servos, e não piores, como quando eram pagãos." - Rev. Hugh Jones, anglicano, 1724

O que Pizarro, Colombro e os restantes "canibais" pareceram nunca compreender foi que, como refere Ohiyesa (aka Charles Eastman) "cada acto de vida do índio, em sentido muito real, é um acto religioso". Porque para o índio a religião não é uma proclamação, um acto isolado, aquilo que professa; é antes aquilo que faz, o que deseja e procura durante as vinte e quatro horas do dia.
Nesse sentido, a perspectiva de uma vitória dos povos indígenas do Dakota frente aos obstinados e alucinados planos da administração Trump para a construção do infame "pipeline" Keystone XL - que atravessa as terras das tribos Lakota e Sioux dos estados do Dakota e Montana - será sempre uma reafirmação de antigas formas de viver sobre a "modernidade" destruidora iniciada no continente com a chegada de Pizarro.
Poderá a justiça funcionar por uma única vez a favor dos "primitivos" e da sua estranha forma de vida?


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