Ernesto e o Futebol (1)

Se imaginarmos a Colômbia como uma estranha cunha apontada ao Amazonas, Leticia é a ponta da lâmina, na confluência de dois outros países gigantescos da região: o Brasil a oriente e o Peru na costa do Pacífico. Por isso lhe chamam "Tres Fronteras". A cidade não é particularmente conhecida fora da Colômbia, ou da região, mas há na sua história um pormenor que a coloca em centenas de livros sobre a história da América Latina e, em particular, de um dos seus filhos mais importantes: o médico e revolucionário argentino Ernesto Guevera de la Serna, conhecido universalmente pela sua alcunha da guerrilha cuba, "Che".
Quando o "Che", que ainda não era "Che", passou por Leticia, em 1952, preparava-se para terminar um longo percurso iniciado cerca de meio ano antes, na sua Argentina natal, e que o levou a quatro grandes nações sul-americanas: Chile, Perú, Colômbia e depois Venezuela.
Futebol com os cantoneiros
Ainda Leticia era uma miragem e já o duo argentino mostrava dotes com a bola nos pés. A caminho do norte do Chile, perto da mina de Magdalena, Ernesto e Alberto metem-se num treino que por acaso presenciam com a fanfarronice de quem não tem nada a perder. As suas instruções parecem todavia acertadas e por isso são contratados para treinar e alinhar pela equipa local, depois de um breve encontro na estação de caminhos de ferro, onde os cantoneiros preparavam para uma partida frente ao rival de Iquique:
"Passados dois dias, chegou domingo, assinalado por uma esplêndida vitória da equipa em que jogávamos os dois e por uns cabritos de churrasco que Alberto preparou de modo a maravilhar a concorrência com a arte culinária argentina". [1]Já provei e confirmo: os argentinos são soberbos assadores de carne.
Machu Pichu, o cenário improvável
A passagem de Guevara pelos cumes dos Andes teria um tremendo impacto na formação da sua consciência latino-americana. Se no Chile sentira um primeiro impacto da dureza da vida dos mineiros e das classes empobrecidas pelo trabalho e pela exploração, no Peru contempla os vestígios da civilização Inca e compreende "a distância moral" que separa os povos originais do vulgar turista americano, "carregado de espírito prático" mas a quem escapam subtilezas "que só o espírito semi-indígena do sul-americano pode apreciar". [1]
Nas ruínas incas encontram um grupo jogando futebol e, como bons argentinos, não resistem em fazer uso do habitual sarcasmo da terra das pampas:
"En las ruinas nos encontramos con un grupo que jugaba al fútbol y tuve la oportunidad de lucirme en una que otra atajada por lo que manifesté con toda humildad que había jugado en un club de primera de Buenos Aires con Alberto, que lucía sus habilidades en el centro de la canchita."

San Pablo e depois Leticia
Antes de chegarem à Colômbia, navegando pelo Amazonas na precária jangada "Mambo-Tango", Ernesto e Granado haviam passado uma curta temporada na Leprosaria de San Pablo, onde o futebol fazia parte dos momentos de convivência: "De tarde jogámos um jogo de futebol, em que melhorei um pouco, mas meteram-me um golo asqueroso". [1]
A cidade acolheu-o - e ao seu companheiro Alberto Granado - com os braços abertos de uma América Latina dividida por fronteiras mas em certo sentido una, num género de sentir bolivariano que muitos anos mais tarde um homem inspirado pelo exemplo de Guevara procuraria projectar sobre todo o continente a partir de Caracas.
Escreve Pierre Kalfon, no seu "Che: Ernesto Guevara, uma lenda do século": "Em Leticia, os dois companheiros tiram o máximo partido da fama internacional do futebol argentino. Propõem-lhes que treinem a equipa local, o que eles fazem de forma tão eficaz que conseguem dinheiro para pagar os seus bilhetes de meia tarifa para Bogotá num grande hidroavião-cargueiro anfíbio do exército".
A equipa local era a do Indepedientes e o sucesso de Ernesto e Granado é descrito pelo próprio à sua mãe, Celia, em carta datada de 6 de Julho de 1952, e que começa com o habitual "Querida vieja":
"En Leticia en principio nos trataron bien, nos alojaron en la policía con casa y comida, etc., pero en cuanto a cuestiones de pasaje no pudimos obtener nada más que un 50% de rebaja por lo que hubo que desembolsar ciento treinta pesos colombianos mas quince por exceso de equipaje, en total mil quinientos de los nuestros. Lo que salvó la situación fue que nos contrataron como entrenadores de un equipo de fútbol mientras esperábamos avión que es quincenal. Al principio pensábamos entrenar para no hacer papelones, pero como eran muy malos nos decidimos también a jugar, con el brillante resultado de que el equipo considerado más débil llegó al campeonato relámpago organizado, fue finalista y perdió el desempate con penales. Alberto estaba inspirado con su figura parecida en cierto modo a Pedernera [2] y sus pases milimétricos, se ganó el apodo de Pedernerita, precisamente, y yo me atajé un penal que va a quedar para la historia de Leticia. Toda la fiesta hubiera sido muy grata si no se les ocurre tocar el himno colombiano al final y me agacho para limpiarme un poco de sangre de la rodilla mientras lo ejecutaban, lo que provoco la reacción violentísima del comisario (coronel) que me atacó de palabra y le mandaba mi rociada flor cuando me acordé del viaje y otras yerbas y agache el copete."Treinadores, jogadores, finalistas do campeonato e, no caso de Ernesto, protagonista de uma defesa "que vai ficar na história de Leticia".
Em Bogotá com Di Stefano
Muitos países sul-americanos são territórios imensos e a Colômbia é um deles. De Leticia a Bogotá, a capital colombiana, a distância, que é física mas também económica, social e cultural, supera os 1000 quilómetros.
Em Bogotá, Ernesto e Granado procuram Di Stefano e, à porta de um restaurante, conseguem bilhetes para o encontro entre o Millionarios, a super-equipa colombiana onde brilhavam alguns dos maiores craques argentinos, e o Real Madrid.
Em uma semana realizam-se duas partidas entre os dois clubes e o resultado acaba sempre a favor da equipa da casa: 2-1 a 5 de Julho (Copa Ciudad de Bogotá) e 2-0 a 9 de Julho (Trofeo de la Cancillería de España). Os aventureiros argentinos terão estado no segundo jogo, "desde la más popular de las tribunas" [3], aplaudindo Di Stefano, Pedernera e companhia.
Regresso a casa
A viagem chegava ao seu ocaso. De Bogotá viajam para Caracas, onde Granado ficará. Ernesto segue de avião para Miami e, desse lugar onde permaneceu algumas semanas, regressa à Argentina para terminar o seu curso de medicina e preparar para uma segunda grande viagem ao encontro de Granado.
A ligação de Guevara ao futebol estará longe (muito longe) de terminar...
Notas:
[1] em "Notas de Viaje".
[2] Referência a Adolfo Pedernera (1918-1995), médio argentino que alinhava, à data da passagem de Ernesto e Granado pela Colômbia, no Millionarios, clube onde se encontrava igualmente Alfredo Di Stefano antes de rumar ao Real Madrid.
[3] "Mañana veré a Millonarios y Real Madrid desde la más popular de las tribunas, ya que los compatriotas son más difíciles de roer que ministros." [Carta à mãe, 06/07/1952]
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