A nossa maior derrota
O Belenenses tem 101 anos de existência. É um clube grande, com quase 3000 atletas distribuídos por nove modalidades - Futebol, Atletismo, Natação, Triatlo, Andebol, Futsal, Rugby, Basquetebol, Voleibol -, com muitos adeptos e uma massa associativa resiliente ainda que reduzida. É um clube bairrista que se projectou para o país e o mundo, e que teve quase sempre uma circunstância especial: a sua dimensão desportiva andou quase sempre um passo à frente da sua capacidade financeira e, com esta relacionada, da sua dimensão associativa formal (ou seja, do seu número real de associados).
Após 1999 o Clube entrou num processo que os anos vão tornando mais claro e que nos conduziu à situação da perda do futebol profissional para uma entidade externa, situação consumada na viragem de 2012 para 2013 e depois confirmada em 2014, quando dando execução ao que suponho ter sido sempre e desde o início o seu plano, a referida entidade transformou o Belenenses associativo num detalhe menor da existência da sociedade comercial dedicada à exploração do "negócio do futebol" por si controlada.
Não é minha intenção voltar ao tema até porque, nos últimos anos, o debate associativo esteve totalmente afunilado para o conflito Belenenses x Codecity. Na minha cabeça é assunto arrumado, independentemente do que o futuro nos reserve. E não tenciono voltar a ele, a menos que me veja a isso forçado.
Seja como for, desde 2018 que o Belenenses tem sofrido uma pesada derrota quotidiana. Uma daquelas que se sobrepõe ao peso, à tristeza ou à angústia de quaisquer resultados desportivos. Refiro-me à consolidação de um cenário de falta de respeito entre adeptos e associados que tem triste ilustração na constante - e por vezes obsessiva - discussão desregrada, extremada e não raras vezes insultuosa troca de acusações nas chamadas "redes sociais". No Belenenses perdeu-se o respeito. E perdeu-se o respeito nas várias dimensões: entre adeptos, entre associados e, não menos importante, o respeito institucional relativamente aos dirigentes nomeados (nas secções, por exemplo) ou eleitos (nos órgão sociais do Clube).
O estudo da história belenense, desde 1919 até final dos anos 80, revela momentos de tensão associativa, assembleias duras, tensões internas, injustiças quanto baste. Essa história associativa - a história do Clube enquanto associação livre de homens e mulheres apaixonados pelo emblema, para lá dos resultados, das classificações e dos troféus - está por fazer, mas quem se dedicar a ler os relatórios de gerência, os boletins e jornais antigos, ou a literatura existente - não terá dificuldade em identificar uma solenidade e um respeito institucional entre belenenses que superava qualquer consideração relativas às divergências da vida associativa.
Os anos 90 e a agudização dos problemas financeiros do Clube, primeiro camuflados pelo Bingo e depois pela ilusão do crescimento associativo decorrente da abertura das Piscinas, em 1993, trouxe consigo uma certa loucura associativa com expressões diversas. Sucederam-se gerências, direcções, presidentes e aparentes soluções para um problema com dezenas de anos no nosso Clube: o emagrecimento real do associativismo belenense e as crescentes dificuldades em competir num contexto cada vez mais desafiante e diferente face ao dos primeiros 50 anos de vida do Clube.
Em janeiro de 1990 o clube passa a ser “pleno proprietário” dos terrenos do Restelo sobre os quais já gozava direito de superfície, mas nem isso parece ser suficientemente relevante parente os inúmeros problemas financeiros com que se debate. No momento da sua saída, Rosa Freire mostra-se cansado e alude aos vinte mil contos emprestados do seu bolso ao clube e que pretende recuperar antes de sair. Acácio Rosa mostra-se chocado.
Segue-se a curta e de certa forma traumática presidência de Joaquim Ferreira de Matos, ex-vice-presidente de Rosa Freire, na qual foi igualmente protagonista Joaquim Cabrita, presidente em exercício no final de 1990. Ferreira de Matos, um dos primeiros a abordar a ideia de “um clube europeu, moderno e gerido como uma empresa” (debate na RTP, 4 de maio de 1990), com departamentos financeiramente autónomos, derrotara o Major Baptista da Silva numa eleição em que recolhera 7142 votos contra 5491 do seu adversário eleitoral. Só que o seu mandato, com final previsto para 1992, foi severamente encurtado, sendo poucos meses após a sua eleição substituído por Joaquim Cabrita.
Em dezembro de 1990, a Assembleia Geral de sócios decide dar poderes a cinco homens para interinamente, e até novas eleições a realizar em Abril de 1991, dirigirem o clube e os seus prementes assuntos. E olhando para os nomes integrantes da chamada “junta directiva” torna-se impossível não sorrir já que dela consta, em lugar destacado pelo seu percurso de inegável devoção associativa, o Major Baptista da Silva, derrotado em Maio. Dessa junta fazem parte ainda José Agostinho Carolas, Jorge Mendes Pinto, Luís Pires e o Coronel Florentino Antunes, que em 1994 será candidato derrotado frente a José António Matias.
Em março de 1991 o Major Baptista da Silva anuncia a recuperação da credibilidade do Belenenses, “apesar dos antigos cheques sem provisão” (não, esse não é um exclusivo da direcção de José António Matias). O líder da Junta Drectiva chamava ainda a atenção dos associados para “letras aceites e não liquidadas nas datas de vencimento” e penhoras resultantes do incumprimento de contratos.
Após as eleições de abril de 1991 é António Moita quem passa a liderar o Belenenses, mandato que fica marcado pelo regresso da equipa à primeira divisão depois de uma breve mas dramática passagem pelo segundo escalão – a segunda na história do Belenenses – na temporada 1990/1991. Mas o Belenenses sofria para resolver os seus múltiplos problemas internos enquanto concorrentes directos como o Boavista FC emergiam e se afirmavam como sérios contendores na disputa do muito pretendido estatuto de “quarto grande”.
Na posse dos novos corpos sociais fala Manuel Sérgio, que endereça “sentida palavra de gratidão” aos membros da Junta Directiva e expressa o seu desejo de ver o Belenenses igual “ao Belenenses de outras eras”. António Moita assume a presidência do Clube no final de maio de 1991 enquanto as contas do clube são auditadas, Abel Braga substitui Moisés Ferreira e chega para chefe do departamento de futebol Carlos Janela.
Em julho de 1992 António Moita retoma o discurso do “Belenenses europeu” em entrevista concedida, considera a experiência das equipas satélite como “um desastre tanto financeiro como desportivo” (referindo-se naturalmente ao Juventude de Belém FC) e considera que a solução passa pelo incremento das camadas jovens. O discurso do projecto, ensaiado antes de Moita e retomado depois de Moita por vários presidentes azuis, é simbolizado pelas declarações de início de temporada, com a promessa de estabilidade no comando do plantel belenense.
Em 1993 realizam-se eleições no Clube e o ex-membro da Junta Directiva de 1990, Luís Pires torna-se presidente da Direcção, mas o mandato previsto para o triénio 1993/1996 não chega ao fim. O assunto do momento é Mauro Airez mas na frente eclética o basquetebol desiste da sua competição, vergado perante a incapacidade de pagar as suas obrigações. Nesse contexto, Luís Pires defende que apenas o futebol e o andebol poderão fixar-se no contexto profissional, velho sonho de alguns sectores do clube incapazes de compreender o papel desportivo mas também associativo do ecletismo azul.
As piscinas são inauguradas, mas a obra permanece incompleta. Inicialmente encaradas como uma fonte de receita e de angariação de novos associados, rapidamente passam a causa de prejuízos. Luís Pires fala de três mil contos mensais e que coloca os associados e adeptos perante uma falsa decisão inúmeras vezes colocada em cima da mesa: o Belenenses como grande do futebol ou como clube do ecletismo sem capacidade competitiva. Fala de um “Belém S.A.” numa altura em que o paradigma das “sociedades anónimas desportivas” ganha corpo e acelera no contexto do debate político nacional.
É neste contexto que quatro vice-presidentes apresentam a demissão. O clube reage mal às declarações de Luís Pires, consideradas injustas pelas modalidades pobres e irresponsáveis pelos vices demissionários.
Defrontam-se no espaço público e associativo duas visões diferentes para o Belenenses do futuro: por um lado Luís Pires, empenhado numa visão empresarial e prioritariamente vocacionada para o futebol profissional; por outro lado, uma visão mais clássica e associativa, defensora do papel das modalidades e do ecletismo num clube onde foi quase sempre o futebol a consumir os recursos existentes e inexistentes.
No papel de vice-presidente de Luís Pires, José António Matias procura apaziguar a situação. Refere que o presidente em exercício tem a intenção de dar continuidade às modalidades, mas o processo foge ao controlo da direcção, que pede eleições. É neste contexto que António Moita regressa ao comando do clube, de forma breve e até às eleições de 8 de maio de 1994.
No dia 19 de maio de 1994, José António Matias assume posse como presidente de um Clube grande na história, mas afogado em problemas e dívidas que Acácio Rosa deixará lavradas no seu “História do Clube de Futebol “Os Belenenses” – 1919 a 1991”. O Bingo preocupava, as piscinas dividiam, as despesas com o futebol superavam largamente as possibilidades do Clube.
Seguem-se anos loucos, marcados por uma ilusão gerada em torno da equipa de 1995/1996, liderada por João Alves, numa história que se fará um dia, por de facto merecer ser contada.
O título de Andebol na temporada 1993/1994 é um balão de oxigénio que alimenta o ego belenenses, mas o futebol consome toda a capacidade financeira do Clube, esgotado por problemas antigos, recentes e novos. O Restelo sofre a ameaça da penhora e a causa é... Saavedra, imagine-se. São loucos, estes belenenses. Somos loucos, nós, os belenenses. E a causa da loucura é o amor ao Clube, porque nisso somos diferentes: somos belenenses só belenenses, sem "segundo clube" nem "preferido para o título". O campeão seremos nós, ou ser-nos-á indiferente quem seja o campeão.
A Matias segue-se Fernando Ferreira, de forma breve, e depois Ramos Lopes. O debate interno é asfixiado pelas antipatias, as tensões entre grupos, o "conselho geral contra a direcção", a "direcção anterior contra a actual"... é uma década em que o conflito interno chega a assumir a forma de processos judiciais de que serão algo dirigentes como Henrique Abecassis, Rosa Freire ou António Matias. Acácio Rosa, falecido em 1995, é ofendido e depois homenageado com o seu nome a ser atribuído, com inteira justiça, ao Pavilhão Gimnodesportivo do Belenenses.
A década de 90 é verdadeiramente a da institucionalização da falta de respeito interno, coisa que nunca mais foi recuperada. De resto, as dificuldades crónicas e progressivamente agravadas ao longo dos 21 anos que já leva este século XXI deixaram o Belenenses numa encruzilhada que, parece-me a mim, teria solução face ao rumo que o clube vinha trilhando desde 2018.
Aceito perfeitamente - mau seria se não aceitasse - que haja no Belenenses quem pense a circunstância actual e analise o caminho que a ela nos conduziu de forma diferente ou mesmo totalmente oposta àquela que me parece a mais correcta. Mas não aceito, enquanto sócio, que a falta de respeito se mantenha e aprofunde (ainda que me pareça difícil ir mais fundo, ou seja, ir mais abaixo face ao que tenho lido e ouvido nos fóruns virtuais do universo belenense), num cenário que exige - repito e sublinho: que exige - a unidade dos belenenses que verdadeiramente querem bem ao Belenenses.
Porque independentemente de considerações sobre pessoas, decisões e rumos, a verdade é que nunca nenhuma direcção do clube viveu uma circunstância semelhante, de um ano completo sem actividade desportiva de mais de 90% dos seus atletas e equipas. O clube vive de facto uma circunstância perigosa, que dispensa o sarcasmo mal educado, as acusações e insinuações sem fundamento, os insultos baratos e o bota-abaixismo sem alternativa credível fundamentada em acções e propostas concretas (que de listas de objectivos bonitos está o inferno cheio).
O debate interno faz-se também de divergência, confronto de ideias e construção de alternativas. Venham elas. O que me parece evidente é que não há debate no seio do lamaçal do insulto, das meias palavras, das indirectas no facebook e no twitter, das meias-insinuações, das acusações e até das falsidades absolutas que dominam o discurso público nas redes sociais belenenses.
É preciso RESPEITO. Respeito entre pares e respeito face ao Belenenses e aos seus órgãos eleitos. Divergência sim. Oposição, apoio ou cepticismo, claro. Alternativas, sempre. Mas por amor ao Clube, à sua história, ao seu presente e ao seu futuro. Caso contrário não há viabilidade para o associativismo belenense, mesmo que o Clube - ou o seu nome - permaneçam.
Excelente texto dobre a realidade do Belenenses dos últimos 25 / 30 Anos. Recordo com amargura e desilusão os tempos da presidência de José António Matias... Aí sim, valia tudo e o nome do nosso clube passou a ser confundido com trafulhice e delírio... Recordo também a mencionada equipa construída por João Alves,parasita que , com plenos poderes delegados, arruinou nos planos desportivo, financeiro e de credibilidade o Clube. De qualquer forma nunca poderia imaginar que ainda poderíamos descer mais baixo com as constantes loucuras e delírios de passados gloriosos, fáceis de vender a uma massa associativa saudosista e crédula. Quando ouvia falar no "lugar que nos pertence por direito" sentia sempre um arrepio na espinha porque sempre olhávamos para trás, para o que tínhamos sido e ainda acreditávamos ser, sem no entanto revelarmos capacidade de projetar o futuro é de olhar de frente os desafios.Fomos verdadeiramente grandes por alguns momentos com a conquista da 3a Taca de Portugal,grandes com os terceiros lugares no campeonato, grandes com Marinho Peres, grandes com Stoiko Mladenov... Pena que aprendemos muito pouco como ser grandes e chegámos ao inacreditável momento atual... Mais uma vez acreditando nos delírios grandiosos e na falta de caracter de direções e dirigentes... Infelizmente, estamos cada vez mais fortes no conflito e no insulto das redes sociais (onde os poucos que somos se transformam num imenso vazio virtual, ignorado e desprezado por todos os outros). Que saudades do Belenenses que fomos e poderíamos ter voltado a ser, de todos os sócios e adeptos e afastámos. Oxalá um dia, com outras pessoas seja possível retirarmos o nosso rumo. Até lá o meu Belenenses é aquele que o meu Pai me ensinou a amar mas que já não tenho a certeza de existir. Um abraço para todos. Paulo Antunes
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