Atomização e ecletismo: como erramos ao comparar contextos diferentes ou, ao contrário, como não percebemos o que é comum a todos eles.

Costuma dizer-se que "em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão". O povo é detentor de uma sabedoria feita de experiência em camadas, geração após geração, sendo esta aplicável aos mil e um contextos de vida em que nos vamos envolvendo.

O Belenenses é desde há décadas uma "casa onde não há pão". A análise dos relatórios de gerência, dos números e da sua interpretação ao longo de décadas - num clube com mais de 100 anos de história - não deixa dúvidas acerca disso. Cite-se, a título de curiosidade, o relatório da Comissão Técnica (ou seja, dos responsáveis da secção) do Rugby logo em 1928: “Foi com pesar que os componentes desta secção notaram a corrente desfavorável de alguns consócios, alegando gastos demasiados que acarretaria para o Clube”.

No início dos anos 40 já se debatia abertamente a capacidade financeira do Clube para: a) se manter num nível competitivo elevado ao nível do futebol, num cenário de profissionalismo escondido, controlado e manipulado pela recém formada DGEFDSE; b) continuar a desenvolver o seu trabalho - técnicos, desportivo e logístico - ao nível das chamadas "modalidades" (nas "secções pobres) perante um cenário de aumento de dívida à vista de todos.

Leiam-se as obras de Acácio Rosa. Registe-se a quantidade de vezes que nelas se refere, década a pós década, a situação limite do Clube. Analisem-se os números dos anos 70, 80 e 90, porque eles explicam pelo menos parcialmente a forma como - e a dimensão com que - a "bola de neve" chegou a esta última década de vida do CFB. É um exercício importante, que dessacraliza um passado nem sempre coincidente com a visão que deles temos, e que basicamente nos foi transmitida pelas gerações que o protagonizaram. O Clube viveu sempre no fio da navalha, pelo menos após 1956. Não era raro aparecerem "letras" não escrituradas que de alguma forma eram pagas, não raras vezes sem que a comunidade dos sócios se importassem muito acerca do "como". E assim fomos vivendo.

Ao longo do tempo foi crescendo uma tendência, muito alicerçada na falta de recursos e na comparação entre o desempenho desportivo das diferentes modalidades, para uma atomização da análise superficial, quase sempre descontextualizada, sobre a situação de cada uma delas. Não é preciso ser-se grande especialista para se compreender que comparar o contexto desportivo e económico de uma modalidade com uma dezena de verdadeiros clubes e o contexto de outra com várias centenas deles não é, independentemente dos méritos e deméritos de cada uma delas, uma coisa muito séria. Mas é isso que, nesta tendência de atomização da análise, vai predominando no debate associativo. E isto tem uma consequência dramática: não percebemos bem o que é especifico de cada uma delas e, ao mesmo tempo, não identificamos bem aquilo que é comum a todas. Resultado: se não definimos correctamente a pergunta, estaremos longe de conseguir encontrar a melhor resposta.

Cada modalidade - e cada secção - tem um contexto que explica sempre - através de aspectos de natureza intrínsecos e extrínsecos - os sucessos e os insucessos que se vão verificando. Uma coisa é certa: não há sucesso que não tenha esforço e dedicação como base, nem insucesso que seja apenas explicável por factores e condicionantes externos. 

Todavia, também é importante resistir à tentação de, sobretudo no contexto dos insucessos, afunilar a análise para um género de harakiri interno. A crítica e a autocrítica só funcionam e só têm verdadeiro valor construtivo se forem acompanhadas de uma visão mais vasta sobre o contexto em que as equipas e as secções do Belenenses actuam.

Por exemplo: para se perceber porque razão o Voleibol do Belenenses tem tido maior dificuldade nos últimos anos em competir ao nível da 1ª Divisão é importante perceber o que foi feito internamente mas é igualmente importante compreender que uma modalidade em que só existiam duas equipas verdadeiramente relevantes na cidade de Lisboa - o Belenenses e a Lusófona - conheceu nos últimos anos o ingresso na competição do Benfica e do Sporting, ambos os clubes a actuar hoje na 1ª Divisão feminina. O Belenenses perdeu capacidade de atrair e sobretudo de reter talentos e a Lusófona encontra-se na 2ª Divisão. Apenas demérito das secções de Voleibol dos dois clubes em causa?

Atenção: não se trata aqui de "chorar" e culpar terceiros pelas nossas deficiências. Recordo aliás as palavras do Gonçalo Peixeiro, da secção de Voleibol, a propósito do tema da chegada de Sporting e Benfica ao contexto competitivo de que estavam ausentes há alguns anos: 

"A verdade é que os projetos do Benfica e do Sporting oferecem perspectivas competitivas bem diferentes daquelas que o Belenenses consegue oferecer hoje. É nisto que a atual direção da seção tem vindo a tentar mudar. Queremos ser claramente uma referência no voleibol da grande Lisboa e ser a primeira escolha de todas as atletas quando a questão financeira não seja o fator decisivo" (Revista CAMISOLA AZUL n.º3). 

"Problema": nada disto se resolve no imediato e, apesar dos avanços - efectivos! - na criação de melhores condições, há aspectos estruturais que nenhuma direção - do Clube ou de secção - consegue resolver num estalar de dedos.

A palavra-chave, num momento em que é anunciada uma reflexão acerca do futuro das modalidades no Clube, é paciência. E é aqui que reside o segundo problema, também ele estrutural: a paciência é um bem escasso, no desporto como na vida. E atenção: não me refiro à paciência enquanto capacidade para encaixar sucessivos infortúnios e insucessos, sem reagir. Nada disso. Esta paciência é aquela que poderá fazer a diferença: dar tempo ao tempo, perceber que às vezes um passo atrás são dois em frente, compreender que mais importante do que torrar dinheiro em equipas que chegam e partem é investir o pouco que vamos tendo em condições duradouras para os que chegam e permanecem, que são os nossos miúdos (e as nossas miúdas) da formação. Não como uma escolinha de desporto, mas como uma escola de formação desportiva de campeões. A maior da Cidade de Lisboa.

Há realmente uma dificuldade grande em consensualizar análises acerca dos problemas do ecletismo belenense. É todavia fundamental resolver essa questão para que possamos partir para o que realmente importa, de forma decidida, com uma visão de pelo menos médio-prazo e sem o habitual pára-arranca que quem está de fora não raras vezes nos aponta (eu já o ouvi meia-dúzia de vezes pela boca de meia-dúzia de treinadores diferentes: "vocês estão sempre a arrancar com projectos desportivos e depois, ao primeiro obstáculo, vacilam e recuam").

Na minha perspectiva existem sete pontos/alíneas que poderão dar consistência a um ecletismo futuro que volte a dar ânimo e ligação entre secções/equipas e a bancada. Nenhum deles se enquadra numa política de "amanhã tudo". Porque não há condições para isso, ponto.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Assembleia Geral Eleitoral 2020: Porque voto A?

A cultura do Râguebi

A segunda morte do Estrela da Amadora