O homem que nunca se engana e raramente tem dúvidas

Passamos a vida a lamentar a pequenez da memória que cultivamos quando na verdade - e não obstante alguns de nós terem mesmo memória de galinha - o que nos vai fazendo deixar cair (pelo menos da memória mais presente) as recordações do passado é o entupimento de informação a que estamos submetidos - queiramos ou não - nos dias que correm. É por isso bom que figuras como o actual presidente da República revisitem a sua vastíssima experiência em crises políticas do passado, lembrando os concidadãos acerca de governos de gestão em que andou - de uma forma ou de outra implicado - não vá alguém esquecer-se de que nesta República desbaratada Cavaco foi e é o político que durante mais tempo ocupou as mais relevantes funções no Estado: desde o início da década de 80, há mais de 30 anos, ocupou as funções de ministro das finanças (1980-1981), primeiro-ministro (por três vezes, incluindo duas em maioria absoluta, entre 1985 e 1995) e presidente da República (desde 2006). Não há outro nome, no período pós-25 de Abril, com tantas e tão graves responsabilidades no estado a que isto chegou.

Por força das circunstâncias recordo bem o Cavaco-primeiro-ministro e os seus governos. Foi ainda miúdo, numa manifestação contra a PGA, que durante uma correria Avenida D.Carlos I a baixo fui baptizado em matéria de repressão policial pelo bastão de um polícia do corpo de intervenção, coisa comum naqueles tempos. É por isso sem recurso a testemunho em segunda mão, sem necessidade de especulação, que posso afirmar ser um dos filhos-bastardos do cavaquismo-repressivo, por oposição aos filhos legítimos que vieram a encher (e a encher-se) na bolsa, nos bancos e nas seguradoras que o regime se encarregou de recolocar nas mãos dos donos-disto-tudo. O "milagre económico" cavaquista fez-se ao estilo da senhora Tatcher, com salpicos mal disfarçados de pinochetismo.

Como Cavaco é homem que nunca se engana e raramente tem dúvidas não é de esperar que desde 1995 tenha mudado o fundo autoritário que norteou os anos de chumbo da sua governação, com ou sem torneira de escudos e ecus jorrando as "pipas de massa" que fizeram de muito empreendedor um orgulhoso dono de viatura italiana de altíssimo gabarito e cilindrada. O Cavaco de 2015 não é diferente daquele descrito na ficha de identificação policial do fascismo. E por isso é com divertimento que tenho acompanhado o processo de legitimação que parece ter em curso face a uma decisão há muito tomada sobre o destino a dar ao país na ressaca da derrota do anterior governo nas eleições de 4 de Outubro (quebra de mais de 700 mil votos e trambolhão percentual com perda da maioria-absoluta na Assembleia da República) e posterior demissão, após frustrada discussão do inexistente Programa de Governo.

Se Cavaco terá ou não a força suficiente para impor ao país, uma vez mais, a sua vontade acima de todas as outras é coisa que o futuro próximo esclarecerá. O que para já fica registado é a sua enorme vontade de, até ao fim, mostrar que nos apertados limites do rectângulo quem manda é ele, o homem das maiorias absolutamente asfixiantes, das cargas policiais, das reprivatizações e do bonito serviço que representaram para um país cujo futuro tem sido sucessivamente adiado.

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