A trincheira infinita



Este período de "reclusão" a que somos forçado pelo vírus tem sido atípico face a qualquer expectativa que em abstracto pudesse ter criado relativamente a uma circunstância semelhante. Ainda não li um livro de fio a pavio, ainda não vi um filme do primeiro ao último minuto. A verdade é que me falta algum tempo (por mais estranho que pareça) e sobretudo disponibilidade mental.
Ontem quase abri uma excepção. Reli uma dezena de capítulos de "O mundo sem nós", de Alan Weisman, e vi metade de "A trincheira infinita", filme espanhol que ficciona a história verídica de Manuel Cortés Quero e dos seus trinta anos de confinamento domiciliário.
O filme é violentíssimo se nos imaginarmos na pele de Higinio Blanco, ou Manuel Cortés, no contexto real do pós-Guerra Civil espanhola, a luta fratricida de 1936-1939 que deixou profundíssimas marcas que o tempo demorou (e demora) a atenuar. Trinta anos de clausura para defesa da sua própria liberdade é uma contradição que custará a entender pela simples razão de nenhum de nós ter vivido a Guerra de 1936-1939 nem o posterior processo de "caça" os republicanos e a quantos se empenharam na defesa da República contra o levantamento dito "nacionalista". A leitura da biografia de Marcos Ana ("Digam-me como é uma árvore") poderá ajudar a compreender as razões de Cortés.
Espanha, aqui ao lado, é um mundo bastante diferente do nosso no que à memória da ditadura diz respeito. Talvez porque Espanha não viveu uma revolução libertadora, sendo a monarquia constitucional dos Bourbon um género de transição permitida, caucionada e de certa forma legitimada pelo franquismo. Sem quaisquer riscos para a antiga "nobreza" nem quaisquer ameaças para os mecanismos de poder que continuou a exercer, talvez com a excepção do abalo que sofreu a ideia de "Espanha" como nação (o que não é coisa pouca).
O cinema terá um papel a cumprir na necessária clarificação - e compreensão pública - do sentir daqueles que ainda hoje, mais de 80 anos depois da Guerra, vivem as dores dos seus familiares, amigos e camaradas desaparecidos. Mais os derrotados do que os vencedores. Creio que "A trincheira infinita" é bem sucedido nesse propósito.

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