"Vêm aí os russos"

O quadro político pós-eleitoral, marcado pela perda da maioria absoluta dos mandatos na Assembleia da República por parte da coligação de direita e pela insuficiência de votos e mandatos por parte do PS para formar governo (sozinho), resultou num cenário relativamente inédito, que dá inteira razão aos que antes das eleições foram identificando o propósito exclusivo das legislativas tal como são realizadas em Portugal: escolher 230 deputados e, por essa via, definir a correlação forças no quadro da Assembleia da República.

Este novo cenário parece provocar insónias a muita gente, o que para ser franco não apenas me diverte como me tranquiliza o sono. A direita acena com fantasmas "PRECianos" ou com o regresso ao "Gulag" e isso, por si só, é bem a imagem da forma como sentem os resultados do passado dia 4 como real ameaça ao mais-do-mesmo a que se haviam habituado.

Devo confessar que ainda não vejo um eventual entendimento entre PCP, PEV, PS e BE como uma possibilidade real e concreta para lá da mera perspectiva teórica. Não é que não o deseje, apenas não creio que estejam para já reunidas as condições essenciais para a sua concretização. É em todo o caso fascinante o pânico que de súbito tomou conta de boa parte da direita indígena, constatação que encontra plena justificação na reciclagem de um discurso anti-comunista cavernícula, baseado em meia-dúzia de "papões" caídos em desuso e na tentativa de apresentar aos portugueses a perspectiva do PCP impor ao PS os seus programas - o eleitoral e o permanente.

"Vêm aí os russos", gritam dirigentes da direita e os seus "pundits" de trazer por casa. O discurso do medo, da caricatura e da demonização pretende causar mossa a eventual solução "de esquerda", mas terá sempre como principal vítima a própria democracia. [1]

É também neste quadro que importa desenvolver todos os esforços no sentido de concretizar uma viragem política real - de alternativa e não apenas de alternância -, capaz de restaurar no povo português a confiança na democracia que já teve melhores dias, como bem demonstram os mais de 43% de abstenção verificada. Se essa viragem se confirmar - e ela confirmar-se-á nunca no curto prazo, com a eventual constituição de governo PS, mas no médio e longo prazo, com políticas que esse mesmo governo venha a aprovar na AR em conjunto com os restantes partidos "à esquerda" - serei o primeiro a alegrar-me e a confessar que o meu cepticismo era manifestamente exagerado.

Até lá vou-me rindo com as inflamadas reacções dos "democratas" do CDS à simples perspectiva de se verem apeados do poder. Eles que lá chegaram "contra a vontade" de quase 90% dos eleitores... Será que o ministro da economia o sabe? [2]


Notas:
[1] Bons exemplos deste tipo de discurso podem ser encontrados no diário online de direita "Observador", no artigo de José Milhazes "Não quero participar a segunda vez no mesmo filme" (08.10.2015), ou ionline, no artigo de Inês Teotónio Pereira "De pé, ó vítimas de Costa" (10.10.2015).
[2] "Houve 90% de pessoas que não votaram no BE ou no PCP", Público, 08.10.2015.
[imagem: "3 de Maio de 1936, uma frente popular em França"]

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