A sociedade contranatura (1.)


A frase inaugural de "A sociedade contranatura", de Serge Moscovici, é por si só um amplo tema de reflexão e debate que a obra naturalmente aprofunda:
"Para se convencer da sua singularidade, o género humano - ou a parte do género humano que se arroga a falar em seu nome - levanta barreiras à sua volta e coloca-se em oposição ao resto dos seres animados."
A decomposição desta ideia em pequenas parcelas resulta na identificação de uma série de problemas humanos que, por via do relativo domínio da nossa espécie sobre as restantes formas de vida no planeta, explicam de certa forma as fragilidades da nossa espécie.

Moscovici fala-nos desde logo numa necessidade de auto-convencimento ("Para se convencer...") e na forma como esta se concretiza não através da observação objectiva da realidade, mas antes por via da construção de uma percepção artificial e criada a partir de fragmentos seleccionados da sua relação com a natureza que o rodeia.

A percepção que constrói, com base em argumentos de auto-convencimento, visa dar corpo à ideia de uma singularidade (uma excepcionalidade) face aos demais seres animados - animais e vegetais -, relativamente aos quais "levanta barreiras" de natureza diversa, a principal das quais diz respeito a uma total e absoluta falta de sentido de conexão e empatia.

Daniel Quinn, em "Beyond Civilization", desafia-nos a aprender com as manadas e os bandos, com os cardumes e as famílias de gansos, baleias, elefantes e pinguins. Fazê-lo exige derrubar as barreiras levantadas, desconstruir a percepção criada e o auto-convencimento de uma excepcionalidade que o momento presente ajuda a desmistificar.

Somos bichos. Nascemos e morremos. Pelo meio crescemos, reproduzimos-nos, envelhecemos, adoecemos, melhoramos ou não. Como aconteceu a um cão, por exemplo. Ou aos búfalos que levámos perto da extinção.

O momento que a Humanidade atravessa é uma excelente oportunidade para reequacionar modos de vida, perspectivas sobre o lugar do Homem no mundo e sobre o seu futuro num contexto de uma incerteza que não é removível das suas circunstâncias. Incerteza que pode derivar de um vírus altamente contagioso - o cenário deixou de ser apenas teórico e ganhou vida própria... - ou das ameaças que estão ao virar da esquina, com as alterações climáticas à cabeça.

Infelizmente, perante a evidência da falácia da "singularidade" humana e da "excepcionalidade" de algumas das suas comunidades - nomeadamente aquelas "se arroga(m) a falar em seu nome" - o Homem levanta ainda mais barreiras, fecha fronteiras, afugenta o outro, exige distância que é, muito mais do que física, relacional. A sociedade contranatura naturaliza-se, ganha raízes. Tem 10.000 anos, a idade da agricultura e da sedentarização, das barreiras e da construção da estranha ideia de uma "singularidade" que nos pode destruir como comunidade.

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