"E entretanto, do outro lado do mar, morreu um rio..." [1]

Por vezes interrogo-me se a maior tragédia deste planeta não será o Homem. Faço-o sem pingo de misantropia, sem distanciamento face à espécie a que pertenço, apenas porque me sinto incapaz de compreender a Humanidade e a mim próprio dentro dela.

Não sei o que nos resta de bom senso, de sentido de bem comum. Creio que quase tudo se vai perdendo com cada espécie que ajudamos a extinguir, com cada floresta que dizimamos, com cada rio que afogamos em lixo.

Ninguém fará um minuto de silêncio pelo rio assassinado, embora todos saibamos que sem água não há vida, e que é contra a própria vida que atentamos sempre que, com ou sem consciência disso, torcemos a lâmina que desde há muito enterrámos na carne tenra de um planeta que procura desesperadamente sobreviver-nos.

A capacidade regeneradora da natureza acabará por ressuscitá-lo - ao Rio Doce -, provavelmente quando não sobrar um homem para ver nessa ressurreição uma boa "oportunidade de negócio". A natureza olha-nos como o prisioneiro encara o seu carcereiro, como uma tonelada de peixe arreada do mar no seio de uma rede olha os pescadores que vasculham a imensidão azul à procura do que já rareia.

Somos o pelotão de fuzilamento do que resta das paisagens do Genesis, como lhes chamou Sebastião Salgado, o fotógrafo activista que quer recuperar as nascentes do Rio por saber que a esperança reside na raiz. Com absoluta franqueza não vislumbro na esmagadora maioria de nós a capacidade - e a vontade - de baixar as armas, oxalá esteja errado. Deploramos a raiz - e talvez por isso abusemos da expressão "radical" em sentido pejorativo -, sobretudo porque esse movimento de retorno ao inicial nos confronta com a morte da nossa própria nascente, tão afogada em lama tóxica como aquela do Rio Doce brasileiro.

O Rio Doce morreu e fomos nós que o matámos. Que cada um perca pelo menos um minuto do seu dia para em silêncio assumir as culpas que lhe cabem nesta tragédia.

Notas:
[1] "A morte de um rio", Fernando Alves, TSF, 19.11.2015.
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