1989: o ano em que o futebol "morreu" (1)

Quando em 2013 Margaret Thatcher morreu muitos saíram à rua para celebrar com enormes embalagens de leite que usaram para brindar ao desaparecimento de um dos símbolos mais poderosos do neoliberalismo que dominou a cena internacional dos anos 80 e o início dos anos 90 do século XX. O pormenor terá passado despercebido à maioria daqueles que, fora do Reino Unido e da Irlanda, observavam boquiabertos as celebrações populares da morte de Thatcher, mas nenhum britânico com mais de 40 anos ignorava o facto da ex-primeira ministra ter passado à história com a alcunha “milk snatcher”, depois de no início da década de 70 e na qualidade de secretária da educação, ter alargado a crianças entre os 7 e os 11 anos a medida anteriormente tomada pelo ex-governo “Labour” de interromper a distribuição de leite nas escolas.
O roubo do leite nas escolas, para muito o único que bebiam, foi o prelúdio de vinte anos de conflito permanente, assumido e disfrutado de Thatcher e dos seus “Tories” contra as camadas mais pobres da população inglesa.
Thatcher e o seu programa de liberalização acelerada da economia britânica teve durante os seus anos de governante três alvos fundamentais: os trabalhadores e o operariado, os sindicatos que os representavam e os republicanos irlandeses. Do primeiro grupo referido fazia parte a maioria daqueles que na fase final da sua estadia em Downing Street seriam eleitos como o último grande alvo do thatcherianismo: os adeptos de futebol.
Maggie Thatcher e o futebol
É unânime a ideia de que Thatcher detestava futebol. A realidade demonstrou que no contexto desta antipatia nunca negada, os adeptos eram a principal razão do seu desprezo pelo jogo plebeu, das bancadas cheias de operários e respectiva prole.
Sendo certo que muitos adeptos ingleses ganharam fama de bêbados, violentos e arruaceiros em resultado directo da sua acção, não é menos verdade que Thatcher e os “Tories” foram exímios no aproveitamento de incidentes ocorridos na maior parte dos casos fora dos Estádios no sentido de gerar na sociedade inglesa uma percepção errada acerca do futebol e sobre a necessidade de o retirar da esfera popular em que este viva praticamente desde sempre.
O pretexto fundamental para alterações radicais na organização do jogo dá-se em Abril de 1989, quando durante uma meia-final da Taça de Inglaterra entre o Liverpool e o Nothingham Forest, noventa e seis adeptos morrem em consequência da sobrelotação de dois sectores de uma das bancadas laterais do Estádio de Hillsborough. Passariam menos de três anos até que o Campeonato Inglês desse lugar à Premier League, alteração que foi, muito mais do que meramente cosmética, um processo acelerado e violento de gentrificação das bancadas e do jogo. Primeiro em Inglaterra, depois no resto do continente Europeu.
É certo que as alterações na organização do jogo vinham de longe e foram aceleradas pela chegada em força das transmissões televisivas e pelo dinheiro da publicidade que inundou os cofres das federações, ligas e clubes. Mais tarde, em 1995, um conflito laboral em torno de um obscuro jogador belga chamado Jean-Marc Bosman vem colocar um ponto final no jogo antigo, e abre as portas do futebol a uma série de intervenientes que nele actuavam de forma contida, esperando na sombra uma oportunidade para transmutar o negócio – que já existia – numa “indústria” de milhões que já se ensaiava com o advento da “Liga dos Campeões”, em 1993.
De resto o desastre de Hillsborough não foi o primeiro do género na Grã-Bretanha. As crónicas antigas do futebol fazem remontar os acidentes envolvendo adeptos à actividade dos primeiros recintos desportivos propositadamente construídos para o efeito. Em Abril de 1902, por exemplo, vinte e cinco adeptos morrem e várias centenas sofrem ferimentos quando uma bancada de madeira do Estádio de Ibrox, em Glasgow, cede. O acidente é conhecido como “o primeiro acidente de Ibrox” por uma razão simples: não foi o último. Em 1961 dois adeptos do Celtic morrem no Estádio, devido ao colapso de uma estrutura numa das suas saídas. Incidentes semelhantes, no mesmo local, ocorreram em 1967 e 1969. Mas foi em 1971 que o “segundo acidente de Ibrox” somou novos sessenta e seis mortos (e mais de duzentos feridos) ao trágico cadastro da casa do Rangers FC de Glasgow.
Estádios pobres para pobres: a agonia do negócio e o advento da "indústria"
Durante décadas os estádios de futebol foram construídos e mantidos com o único objetivo de proporcionar o mínimo de conforto aos adeptos. As preocupações de segurança eram teóricas ou, na melhor das hipóteses, secundárias, e o jogo parecia não gerar receitas e lucros suficientemente atractivos e capazes de levar Clubes e seus donos (no caso inglês) a concretizarem investimentos com fundos próprios na modernização de recintos de grande dimensão e baixa qualidade.
À data do grande acidente de Hillsborough (o segundo, depois de algo semelhante ter ocorrido em 1981, no mesmíssimo local, mas sem vítimas mortais a lamentar), o Estádio tinha uma impressionante capacidade de 55.000 lugares, muito acima das necessidades do Clube. A supressão dos lugares “em pé” e as obras de verdadeira remodelação que se seguiram à tragédia de Abril de 1989, reduziram a capacidade do Estádio para menos de 40.000 lugares sentados, o que veio alterar uma realidade que caracterizava de certa forma a vivência do jogo por parte das camadas populares: no final dos anos 80 o futebol via-se predominantemente em pé e o preço dos bilhetes era muito, muito mais baixo.
Um estudo do Banco de Inglaterra referia em 2011 que em vinte anos de Premier League o custo do ingresso para um jogo do principal escalão do futebol inglês havia subido qualquer coisa como 1000%. Em 1990 o bilhete mais barato para um jogo do Manchester United em Old Traford custava qualquer coisa como £3.50; a aplicação da taxa de inflação anual transformaria esse valor em cerca de 6.20£ em 2011… só que a realidade era já outra. Em 2011 ninguém comprava bilhetes para Old Trafford por menos de 28£.

No futebol quase tudo mudou desde o final dos anos 80 e Hillsborough foi instrumental nesse processo. A orquestrar a mudança estiveram Thatcher e os seus “Tories”. O que mudou não foi apenas o jogo-jogado e o jogo-transaccionado; foram as bancadas enquanto lugar de expressão de identidade das comunidades, dos seus valores e da sua forma de olhar a realidade. Sobretudo em Inglaterra, é certo, mas não apenas em Inglaterra.
(continua)
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