1989: o ano em que o futebol "morreu" (2)



De Sheffield à povoação de Orgreave, no South Yorkshire, são apenas sete milhas de distância. O lugar, sem nenhum interesse particular e pequeno demais para chamar a atenção de forasteiros pouco dados à história do século XX britânico, foi o palco de uma tarde de confrontos entre os mineiros em greve e a polícia do South Yorkshire: a 18 de Junho de 1984, cinco anos antes dos acontecimentos de Hillsborough, centenas de mineiros foram brutalmente espancados e noventa e cinco foram detidos.
Muitos estudiosos da Greve de 1984-1985 referem a chamada "Batalha de Orgreave" como um momento chave no conflito, e em favor do governo da senhora Thatcher. Entre os polícias daquela tarde em Orgreave encontravam-se agentes que anos depois viveriam os acontecimentos de Hillsborough participando activamente na ocultação de factos e na construção de uma narrativa culpabilizante dos mineiros e dos adeptos do Liverpool que a investigação posterior veio a desmentir. [1]



Não existe uma relação directa entre os acontecimentos de Orgreave e os de Hillsborough, mas há neles elementos comuns que importa sublinhar. Desde logo a presença de uma polícia fechada sobre si mesma e de costas voltadas para a comunidade, que num caso vestiu a pele de tropa de choque de um governo anti-popular, e no outro beneficiou dessa cumplicidade com o poder político para ocultar e silenciar as suas responsabilidades na tragédia que vitimou noventa e seis pessoas, incluindo crianças, naquela tarde de sol, em Sheffield.
Sobre a cumplicidade entre o governo "Torie" e a polícia referia em 2012 Jack Straw, membro do governo Labour, que "the Thatcher government, because they needed the police to be a partisan force, particularly for the miners strike and other industrial troubles, created a culture of impunity in the police service" [2].




O Taylor Report
O célebre “Taylor Report” é apresentado em Agosto, mês de interrupção das actividades parlamentares em Inglaterra, o que evidencia de forma clara o interesse dos legisladores acerca das conclusões contidas num documento que não apenas absolvia os adeptos de responsabilidades como comprometia seriamente a polícia do South Yorkshire e as entidades responsáveis pela monitorização da segurança nos Estádios de futebol.
Hillsborough não oferecia condições de segurança, ponto. Todavia, o Estádio manteve-se de portas abertas e foi sucessivas vezes escolhido como palco de um dos jogos mais aguardados de cada época desportiva: a meia-final da Taça de Inglaterra. [3]
A polícia, influenciada pelo estereótipo do “hooligan” que imperava nos círculos do poder britânico, limitou-se a fazer revista aos adeptos, e quando as coisas se descontrolaram verificou, impotente, que sectores com capacidade para não mais de mil e quinhentas pessoas estavam absolutamente apinhados com pelo menos o dobro da lotação. O desastre tornou-se inevitável para ele contribuindo problemas estruturais do espaço e incompetência policial perante as circunstâncias daquele dia em concreto.
Alheada do fundamental do Taylor Report, Thatcher preparava desde os acontecimentos de 1985 no Heysel Park legislação altamente penalizadora para os adeptos de futebol, que olhava como uma turba de hooligans, viciados em álcool e violência, numa visão claramente preconceituosa e construída a partir dos casos felizmente isolados (ainda que de enorme gravidade). A ideia do cartão do adepto, agora retomada em Portugal, foi nesse contexto uma das hipóteses nunca concretizada pelo governo britânico.
O ano de 1990 representa um salto de gigante na consolidação do negócio, transformado em indústria e em acelerada interpenetração com o poder financeiro. David Waddington, figura proeminente do governo, refere-se aos adeptos como "customers" e o debate pós-Hillsborough resvala rapidamente para uma série de discussões sobre os contornos do novo modelo de negócio dos clubes das principais divisões do futebol inglês, forçados a reequipar os seus recintos desportivos e transformar os antigos peões em bancadas integralmente cobertas por lugares sentados.
Clubes históricos desfazem-se dos seus antigos estádios, frequentemente localizados nas zonas históricas das suas cidades, passando a ocupar terrenos nas periferias, negócio muito proveitoso que sacrifica a alma dos lugares no altar da especulação e das necessidades de capital para fazer frente aos galopantes custos do jogo.
Logan Gourley, membro do consórcio que em 1984 adquire a posse do Estádio de Wembley, aconselha os Clubes a desenvolverem estratégias visando aproveitar todos as oportunidades de comercialização "não ilegais" do jogo. [4]
O surgimento da Sky Sports, em Março desse mesmo ano, dá um impulso decisivo para a separação dos clubes de topo face aos restantes emblemas da Football Association. A televisão encharca a "indústria" de dinheiro e os beneficiários directos desta nova fase da financeirização do futebol sorriem alinhados para a fotografia, que no entanto deixa de fora os verdadeiros donos do jogo durante as longas décadas de afirmação como modalidade preferida das camadas populares inglesas.




Em 1992 realiza-se a primeira edição da Premier League. Estava aberta uma nova página na história do futebol inglês, europeu e, logo depois, mundial.

Notas:
[1] "And the sun shines now", Adrian Tempany, pág.35/36.
[2] "o governo de Thatcher, devido à sua necessidade da polícia como força ao seu serviço, particularmente no contexto da greve dos mineiros e outros conflitos industriais, criou uma cultura de impunidade no corpo policial", link.
[3] https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_FA_Cup_Finals
[4] "And the sun shines now", Adrian Tempany, pág.53.

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