Da urgência da revisão da lei das SAD (1)
O processo de mercantilização do jogo não se deu em Portugal de um dia para o outro e em certo sentido acompanhou o processo de recuperação capitalista iniciado em 1976, e que teve no período das maiorias absolutas de Cavaco Silva profundo dinamismo. É todavia com os governos de António Guterres, durante os quais se privatizou na companhia de garrafas de champagne, que a legislação de enquadramento do sistema desportivo e do futebol profissional sofre significativa alteração.
Entre 1995 e 1997 discute-se no espaço público a necessidade de raptar o futebol profissional à dimensão associativa dos clubes entregando-o a estruturas societária de natureza fundamentalmente diferente, com vocação comercial e destinada a servir de veículo ao "reforço de capital" reclamado pelos principais emblemas nacionais, cada vez menos capazes de dar resposta à progressiva necessidade de dinheiro para competir ao mais alto nível.
As "sociedades anónimas desportivas" chegam a Portugal por determinação legal e com um fortíssimo impulso dado pelo Estado.
Nos principais clubes nacionais vivia-se um cenário mais ou menos esquizofrénico de desejo por um lado de mais dinheiro (fundamentalmente destinado à aquisição de plantéis mais fortes, mais competitivos, mais dominadores no plano nacional e capazes de competir no cada vez mais difícil plano internacional) e por outro de evidente constrangimento das direcções no sentido de confessar às suas orgulhosas massas associativas o lógico desfecho da perda de poder, a prazo, face a "investidores", "parceiros financeiros" e outros protagonistas emergentes (fundos de investimento, empresários e grupos de media, nacionais e internacionais).
O primeiro clube a avançar para a formação da sua SAD, mesmo antes de o poder formalizar, foi o Sporting liderado por José Roquette, empresário que chega a afirmar as sociedades anónimas como "o 25 de Abril no futebol". Mais tarde a lei encarregar-se-ia de obrigar não apenas todos os Clubes envolvidos nas competições profissionais a criarem sociedades anónimas desportivas (ou em alternativa SDUQ, sociedades desportivas unipessoais por quotas) como também a prescindirem obrigatoriamente de uma posição maioritária de 50%+1 na sua composição accionista.
Discutida na Assembleia da República, por iniciativa do PCP, a lei foi defendida pelo então Secretário de Estado do Desporto, Miranda Calha, nos seguintes termos: "é objectivo das sociedades desportivas afluir novos meios à área profissional do futebol. Elas representam o reforço de capital. Mas não só, atrás dele vêm exigências de rendibilidade, o que significa um novo tipo de gestão". Sobre o cenário de redução dos clubes a parte minoritária na composição accionista das SAD acrescentou Miranda Calha: "Para que se verifique uma efectiva abertura das portas do desporto à sociedade em geral, é necessário garantir que esta [nota: "a sociedade em geral", leia-se] deterá representação maioritária e que o clube não se irá assenhorar da sociedade desportiva. Foi estabelecido, assim, um tecto para o capital máximo de 40%".
As portas estavam a partir desse momento não apenas "abertas" mas também e sobretudo "escancaradas" para a tomada de assalto das SAD por parte de gente absolutamente estranha aos Clubes, à sua história, valores, missão e comunidade de base. A Sportinveste, empresa de Joaquim Oliveira, torna-se num investidor relevante no contexto das SAD nacionais, assegurando posição accionista nos principais emblemas do cenário futebolístico português (Belenenses, Sporting, Benfica, FC Porto, Boavista e Braga, para além do Alverca, clube de menor dimensão e prestígio).
Vários clubes criaram sociedades sob o seu controlo efectivo para conseguirem somar, no conjunto das várias posições accionistas, pelo menos 50%+1 das suas SAD [3]. Só que estava em definitivo criado o mecanismo para que, a prazo, dificuldades financeiras mais ou menos graves pudessem "obrigar" à venda de posições e com elas o controlo das sociedades.
O ocaso do associativismo
A efectiva perda de poder os Clubes e dos seus sócios sobre os assuntos do futebol profissional, por muitos considerados "a mola real" do associativismo desportivo mais relevante em Portugal, esteve muito provavelmente na origem do enfraquecimento evidente da participação associativa, sobretudo num mundo cada vez mais diverso em matéria de oferta de lazer e profundamente céptico relativamente às causas colectivas, como apesar de tudo os clubes são.
Esse enfraquecimento associativo serviu fundamentalmente os interesses daqueles que progressivamente se iam aproximando do futebol e dos negócios inerentes.
A ideia de "um novo tipo de gestão", defendida 10 anos antes por Miranda Calha e pelo governo de António Guterres, ia caindo perante múltiplos exemplos de sociedades afundadas em dívidas e sem qualquer suporte na comunidade (o União de Leiria será um dos casos mais paradigmáticos deste afastamento, mas não é seguramente o único).
Assim, em 2008 assiste-se àquele me parece ser o prelúdio do grande assalto às SAD. O Boavista, clube caído em desgraça após os "anos de ouro" da família Loureiro e das suas ramificações no poder, vê-se na eminência de fechar as portas. É nesse contexto que o país assiste, atónito, à apresentação de um investidor que apenas horas mais tarde é detido pela Polícia Judiciária.
Os desmandos de anos e anos de gestões irresponsáveis vão fazendo cair clubes relevantes do panorama futebolístico nacional. Alguns fecham portas, outros vêem-se na necessidade de procurar alternativas. Entre vários exemplos importantes, o mais relevante de todos será o do Belenenses, em que em 2013 perde o controlo efectivo da sua sociedade anónima desportiva, vendida por um valor próximo de um salário mínimo nacional a Rui Pedro Soares e à empresa que havia criado dias antes, com um capital social de impressionantes 10.000,00€ (dez mil euros).
Poucos meses depois o então presidente do Clube demite-se da presidência da SAD, contrariando a promessa do "investidor" de o manter como responsável máximo da sociedade, e confessa a existência de interesses conflituantes entre Clube e SAD. O resto da história é por demais conhecido, terminando com a saída do Restelo da equipa controlada por Rui Pedro Soares e pela necessidade de inscrição da equipa de futebol principal do Belenenses na 1ª Divisão Distrital da AFL (a 3ª mais importante das competições distritais, sexta na hierarquia competitiva até ao topo, a 1ª Liga). O passivo da sociedade anónima só aumentou, não obstante a resolução de problemas de tesouraria que, de outra forma, teriam inviabilizado a actividade da própria SAD e, dessa forma, o retorno do investimento do accionista maioritário.
Muitos, muitos casos...
Se o caso do Belenenses foi por ventura o mais mediático e aquele que se revela ainda hoje um estudo de caso pela sua singularidade, é importante ter em conta que são múltiplos os casos de conflito aberto, violento e por vezes irreversível entre Clubes e respectivas sociedades anónimas desportivas. Alguns exemplos relevantes: o Atlético Clube de Portugal, o Lusitano Ginásio Clube (de Évora), o Leixões Sport Club, o Cova da Piedade, o Beira-Mar, o Olhanense, o abandono a que SAD do Freamundo deixou jovens atletas socorridos pelo clube e, agora, o Desportivo das Aves.
A estratégia dos "investidores" parece ser sempre a mesma: encontrar um clube em sérios apuros financeiros, comprar barato, resolver problemas de tesouraria e as dívidas mais prementes e comprometedoras, e depois meter a sociedade a render. Isto pode não significar - e em boa parte dos casos não significa mesmo - obter resultados desportivos relevantes. Uma "SAD" sem grandes ambições desportivas do principal escalão do futebol nacional faz contas à manutenção, investe quanto baste prevendo segurança e "tranquilidade", e dedica-se aos negócios normais do contexto.
Era uma vez na Vila das Aves
O Desportivo das Aves não é nem nunca foi um histórico do futebol nacional. Antes de regressar à "1ª Liga" contava menos presenças na "1ª divisão" do que os dedos de um mão.
A ambição dos seus dirigentes, e o assédio de investidores que ali identificaram fragilidade que viabilizariam um negócio com promessas de curto prazo, levou a que em Abril de 2015 a Assembleia Geral de Sócios aprovasse por unanimidade a transformação da antiga SDUQ em SAD, para assim possibilitar a entrega do futebol profissional a terceiros.
Três meses depois o Clube, que disputava a 2ª Liga, anunciava como novo administrador um cidadão brasileiro ligado ao grupo Galaxy, novo detentor de 70% das acções da sociedade anónima avense. Depois, em 2016, foi a vez do sportinguista Luís Duque assumir funções de director desportivo, num cenário de aparente acumulação de funções como "delegado" dos investidores chineses.
O anúncio da construção de um luxuoso Centro de Estágio parecia indiciar novos tempos na Vila das Aves e em 2017 o emblema chega novamente ao escalão principal do futebol nacional. A "Galaxy Believers" anunciava "disponibilidade financeira" e o clube revelava negociações para a venda de nova percentagem das acções da sociedade.
Armando Silva, o presidente do Clube não hesitava em afirmar que "a SAD reúne pessoas sérias e as coisas melhoraram muito", mas em Abril de 2018 nem o Centro de Estágio estava pronto, nem a convivência entre os elementos da SAD dava mostras de ser o mais saudável. O administrador brasileiro prometia abandonar a sociedade afirmando que "a filosofia dos investidores terá uma perspetiva de curto prazo, que não se coaduna com o projeto sustentado e de crescimento que a administração da SAD, em comunhão com o clube e, tanto quanto se sabe, com muitos dos adeptos, tem em mente".
O futebol é todavia pródigo em contradições e semanas mais tarde o Aves vivia a tarde de maior glória da sua história, vencendo no Jamor um Sporting em profunda depressão dias depois dos incidentes de Alcochete. Um dia depois lia-se no jornal online "Observador" que "os acionistas chineses contrataram jogadores, em quantidade e qualidade, e construíram um complexo desportivo milionário na Vila das Aves".
Em Junho de 2018 Luiz Andrade demite-se e o jornal Record informava que "a sucessão de Luiz Andrade passará obrigatoriamente pela empresa Galaxy Believers, detentora de 90 por cento das ações da SAD do Aves, que, por seu turno, é detida maioritariamente pelos empresários chineses Wei Zhao, que já é administrador da sociedade, e Hongmin Wang". Andrade saia da administração mas não da Galaxy Believers, controlando 10% do capital da empresa através da esposa, Ionela Andrade.
O Aves encontrava-se nessa altura no centro de uma enorme tempestade de casos. Entre Agosto de 2018 e o início de 2019 surgem várias notícias sobre o envolvimento do Desportivo das Aves em processos mediáticos de entre os quais se destaca o chamado caso "Mala Ciao".
Só quem em Maio de 2019, praticamente um ano depois do feito do Jamor, os Sub-23 avenses vencem a Liga Revelação.
A temporada 2019/2020, agora interrompida, trouxe um Aves frágil e instável, com três treinadores em oito meses de competição e a condenação praticamente certa à descida. No plano empresarial, a SAD deixou de conseguir cumprir com os seus compromissos. Salários em atraso, processos disciplinares e jogadores à procura de apoio junto do fundo de garantia salarial do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol revelaram um cenário calamitoso que poderá custar pontos de penalização à SAD e "grande preocupação" por parte de Armando Silva, o tal que em 2017 não hesitava em referir-se à parceria com a Galaxy Believers, "uma empresa portuguesa com sócios brasileiros e chineses" como "sólida" e com excelente funcionamento...

Que futuro para as sociedades anónimas desportivas?
No já mencionado debate ocorrido ainda nos anos 90, em plena Assembleia da República, o deputado Pedro Baptista defendeu a proposta do governo referindo que "se, por acaso, os clubes pudessem entrar com mais de 40% (...), ou seja, se os clubes pudessem controlar directamente a sociedade desportiva, iríamos ter exactamente uma repetição dos mesmos erros de gestão que foram enterrando o futebol português", acrescentando sem pudor que "o futebol precisa de dinheiro fresco".
Infelizmente se boas intenções existiam nas palavras do deputado, o tempo encarregou-se de as refrear.
A entrada da "sociedade em geral" para as sociedades anónimas desportivas não se deu. A consulta do documento publicado pela FPF sobre as estruturas accionistas das várias SAD que competem nas principais provas nacionais. São accionistas maioritários de sociedades do âmbito das provas profissionais entidades tão desconhecidas como a Lalgy & Sidat, Lda (75% da SAD do Amora), Livesoccer Company Limited (90% da SAD da Oliveirense), Decifraglórias, Lda (65% da SAD da Sanjoanense), Hope Football Europe Unipessoal Lda (80% da SAD do Tondela), Lleon Group SA (70% da SAD do CD Fátima), Huang Jin Yi Sport, SA (87% da SAD do Cova da Piedade), Galaxy Believers (89,7% da SAD do Desportivo das Aves), Tavistock Global Resource, Ltd (70% da SAD do Feirense), Estoril Holding LP, composta por um conjunto de outras empresas (75,65% da SAD do Estoril Praia), Quantum Pacifi Management Limited (85% da SAD do Famalicão), Seca Incorporate Hong Kong Ltd (80% da SAD do Vizela), Gradual Score SA (90% da SAD do Penafiel), Playfair Lda (56,3% da SAD do Leixões), DP SGPS Unipessoal Lda (90% da SAD do Lusitano de Évora), Codecity Sports Managment Lda (51,96% da B-SAD) e a For Gool Company (85,88% da SAD do Portimonense).
A lei das SAD precisa de revisão urgente e os pontos fundamentais a alterar passam por um escrutínio rigoroso dos "investidores" e da origem do seu capital bem como de eventuais conflitos de interesses que possam transportar para o contexto da competição; pela exigência, ou pelo menos pela possibilidade, dos clubes controlarem 50%+1 das acções da sociedade; pela possibilidade de reversão mandatória dos negócios de perda de posição maioritária por parte do Clube; e por regras sancionatórias que moralizem a actividade dos "investidores" que hoje actuam com rédea solta.
Entre 1995 e 1997 discute-se no espaço público a necessidade de raptar o futebol profissional à dimensão associativa dos clubes entregando-o a estruturas societária de natureza fundamentalmente diferente, com vocação comercial e destinada a servir de veículo ao "reforço de capital" reclamado pelos principais emblemas nacionais, cada vez menos capazes de dar resposta à progressiva necessidade de dinheiro para competir ao mais alto nível.
As "sociedades anónimas desportivas" chegam a Portugal por determinação legal e com um fortíssimo impulso dado pelo Estado.
Nos principais clubes nacionais vivia-se um cenário mais ou menos esquizofrénico de desejo por um lado de mais dinheiro (fundamentalmente destinado à aquisição de plantéis mais fortes, mais competitivos, mais dominadores no plano nacional e capazes de competir no cada vez mais difícil plano internacional) e por outro de evidente constrangimento das direcções no sentido de confessar às suas orgulhosas massas associativas o lógico desfecho da perda de poder, a prazo, face a "investidores", "parceiros financeiros" e outros protagonistas emergentes (fundos de investimento, empresários e grupos de media, nacionais e internacionais).
O primeiro clube a avançar para a formação da sua SAD, mesmo antes de o poder formalizar, foi o Sporting liderado por José Roquette, empresário que chega a afirmar as sociedades anónimas como "o 25 de Abril no futebol". Mais tarde a lei encarregar-se-ia de obrigar não apenas todos os Clubes envolvidos nas competições profissionais a criarem sociedades anónimas desportivas (ou em alternativa SDUQ, sociedades desportivas unipessoais por quotas) como também a prescindirem obrigatoriamente de uma posição maioritária de 50%+1 na sua composição accionista.
Discutida na Assembleia da República, por iniciativa do PCP, a lei foi defendida pelo então Secretário de Estado do Desporto, Miranda Calha, nos seguintes termos: "é objectivo das sociedades desportivas afluir novos meios à área profissional do futebol. Elas representam o reforço de capital. Mas não só, atrás dele vêm exigências de rendibilidade, o que significa um novo tipo de gestão". Sobre o cenário de redução dos clubes a parte minoritária na composição accionista das SAD acrescentou Miranda Calha: "Para que se verifique uma efectiva abertura das portas do desporto à sociedade em geral, é necessário garantir que esta [nota: "a sociedade em geral", leia-se] deterá representação maioritária e que o clube não se irá assenhorar da sociedade desportiva. Foi estabelecido, assim, um tecto para o capital máximo de 40%".
As portas estavam a partir desse momento não apenas "abertas" mas também e sobretudo "escancaradas" para a tomada de assalto das SAD por parte de gente absolutamente estranha aos Clubes, à sua história, valores, missão e comunidade de base. A Sportinveste, empresa de Joaquim Oliveira, torna-se num investidor relevante no contexto das SAD nacionais, assegurando posição accionista nos principais emblemas do cenário futebolístico português (Belenenses, Sporting, Benfica, FC Porto, Boavista e Braga, para além do Alverca, clube de menor dimensão e prestígio).
Vários clubes criaram sociedades sob o seu controlo efectivo para conseguirem somar, no conjunto das várias posições accionistas, pelo menos 50%+1 das suas SAD [3]. Só que estava em definitivo criado o mecanismo para que, a prazo, dificuldades financeiras mais ou menos graves pudessem "obrigar" à venda de posições e com elas o controlo das sociedades.
O ocaso do associativismo
A efectiva perda de poder os Clubes e dos seus sócios sobre os assuntos do futebol profissional, por muitos considerados "a mola real" do associativismo desportivo mais relevante em Portugal, esteve muito provavelmente na origem do enfraquecimento evidente da participação associativa, sobretudo num mundo cada vez mais diverso em matéria de oferta de lazer e profundamente céptico relativamente às causas colectivas, como apesar de tudo os clubes são.
Esse enfraquecimento associativo serviu fundamentalmente os interesses daqueles que progressivamente se iam aproximando do futebol e dos negócios inerentes.
A ideia de "um novo tipo de gestão", defendida 10 anos antes por Miranda Calha e pelo governo de António Guterres, ia caindo perante múltiplos exemplos de sociedades afundadas em dívidas e sem qualquer suporte na comunidade (o União de Leiria será um dos casos mais paradigmáticos deste afastamento, mas não é seguramente o único).
Assim, em 2008 assiste-se àquele me parece ser o prelúdio do grande assalto às SAD. O Boavista, clube caído em desgraça após os "anos de ouro" da família Loureiro e das suas ramificações no poder, vê-se na eminência de fechar as portas. É nesse contexto que o país assiste, atónito, à apresentação de um investidor que apenas horas mais tarde é detido pela Polícia Judiciária.
Os desmandos de anos e anos de gestões irresponsáveis vão fazendo cair clubes relevantes do panorama futebolístico nacional. Alguns fecham portas, outros vêem-se na necessidade de procurar alternativas. Entre vários exemplos importantes, o mais relevante de todos será o do Belenenses, em que em 2013 perde o controlo efectivo da sua sociedade anónima desportiva, vendida por um valor próximo de um salário mínimo nacional a Rui Pedro Soares e à empresa que havia criado dias antes, com um capital social de impressionantes 10.000,00€ (dez mil euros).
Poucos meses depois o então presidente do Clube demite-se da presidência da SAD, contrariando a promessa do "investidor" de o manter como responsável máximo da sociedade, e confessa a existência de interesses conflituantes entre Clube e SAD. O resto da história é por demais conhecido, terminando com a saída do Restelo da equipa controlada por Rui Pedro Soares e pela necessidade de inscrição da equipa de futebol principal do Belenenses na 1ª Divisão Distrital da AFL (a 3ª mais importante das competições distritais, sexta na hierarquia competitiva até ao topo, a 1ª Liga). O passivo da sociedade anónima só aumentou, não obstante a resolução de problemas de tesouraria que, de outra forma, teriam inviabilizado a actividade da própria SAD e, dessa forma, o retorno do investimento do accionista maioritário.
Muitos, muitos casos...
Se o caso do Belenenses foi por ventura o mais mediático e aquele que se revela ainda hoje um estudo de caso pela sua singularidade, é importante ter em conta que são múltiplos os casos de conflito aberto, violento e por vezes irreversível entre Clubes e respectivas sociedades anónimas desportivas. Alguns exemplos relevantes: o Atlético Clube de Portugal, o Lusitano Ginásio Clube (de Évora), o Leixões Sport Club, o Cova da Piedade, o Beira-Mar, o Olhanense, o abandono a que SAD do Freamundo deixou jovens atletas socorridos pelo clube e, agora, o Desportivo das Aves.
A estratégia dos "investidores" parece ser sempre a mesma: encontrar um clube em sérios apuros financeiros, comprar barato, resolver problemas de tesouraria e as dívidas mais prementes e comprometedoras, e depois meter a sociedade a render. Isto pode não significar - e em boa parte dos casos não significa mesmo - obter resultados desportivos relevantes. Uma "SAD" sem grandes ambições desportivas do principal escalão do futebol nacional faz contas à manutenção, investe quanto baste prevendo segurança e "tranquilidade", e dedica-se aos negócios normais do contexto.
Era uma vez na Vila das Aves
O Desportivo das Aves não é nem nunca foi um histórico do futebol nacional. Antes de regressar à "1ª Liga" contava menos presenças na "1ª divisão" do que os dedos de um mão.
A ambição dos seus dirigentes, e o assédio de investidores que ali identificaram fragilidade que viabilizariam um negócio com promessas de curto prazo, levou a que em Abril de 2015 a Assembleia Geral de Sócios aprovasse por unanimidade a transformação da antiga SDUQ em SAD, para assim possibilitar a entrega do futebol profissional a terceiros.
Três meses depois o Clube, que disputava a 2ª Liga, anunciava como novo administrador um cidadão brasileiro ligado ao grupo Galaxy, novo detentor de 70% das acções da sociedade anónima avense. Depois, em 2016, foi a vez do sportinguista Luís Duque assumir funções de director desportivo, num cenário de aparente acumulação de funções como "delegado" dos investidores chineses.
O anúncio da construção de um luxuoso Centro de Estágio parecia indiciar novos tempos na Vila das Aves e em 2017 o emblema chega novamente ao escalão principal do futebol nacional. A "Galaxy Believers" anunciava "disponibilidade financeira" e o clube revelava negociações para a venda de nova percentagem das acções da sociedade.
Armando Silva, o presidente do Clube não hesitava em afirmar que "a SAD reúne pessoas sérias e as coisas melhoraram muito", mas em Abril de 2018 nem o Centro de Estágio estava pronto, nem a convivência entre os elementos da SAD dava mostras de ser o mais saudável. O administrador brasileiro prometia abandonar a sociedade afirmando que "a filosofia dos investidores terá uma perspetiva de curto prazo, que não se coaduna com o projeto sustentado e de crescimento que a administração da SAD, em comunhão com o clube e, tanto quanto se sabe, com muitos dos adeptos, tem em mente".
O futebol é todavia pródigo em contradições e semanas mais tarde o Aves vivia a tarde de maior glória da sua história, vencendo no Jamor um Sporting em profunda depressão dias depois dos incidentes de Alcochete. Um dia depois lia-se no jornal online "Observador" que "os acionistas chineses contrataram jogadores, em quantidade e qualidade, e construíram um complexo desportivo milionário na Vila das Aves".
Em Junho de 2018 Luiz Andrade demite-se e o jornal Record informava que "a sucessão de Luiz Andrade passará obrigatoriamente pela empresa Galaxy Believers, detentora de 90 por cento das ações da SAD do Aves, que, por seu turno, é detida maioritariamente pelos empresários chineses Wei Zhao, que já é administrador da sociedade, e Hongmin Wang". Andrade saia da administração mas não da Galaxy Believers, controlando 10% do capital da empresa através da esposa, Ionela Andrade.
O Aves encontrava-se nessa altura no centro de uma enorme tempestade de casos. Entre Agosto de 2018 e o início de 2019 surgem várias notícias sobre o envolvimento do Desportivo das Aves em processos mediáticos de entre os quais se destaca o chamado caso "Mala Ciao".
Só quem em Maio de 2019, praticamente um ano depois do feito do Jamor, os Sub-23 avenses vencem a Liga Revelação.
A temporada 2019/2020, agora interrompida, trouxe um Aves frágil e instável, com três treinadores em oito meses de competição e a condenação praticamente certa à descida. No plano empresarial, a SAD deixou de conseguir cumprir com os seus compromissos. Salários em atraso, processos disciplinares e jogadores à procura de apoio junto do fundo de garantia salarial do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol revelaram um cenário calamitoso que poderá custar pontos de penalização à SAD e "grande preocupação" por parte de Armando Silva, o tal que em 2017 não hesitava em referir-se à parceria com a Galaxy Believers, "uma empresa portuguesa com sócios brasileiros e chineses" como "sólida" e com excelente funcionamento...

Que futuro para as sociedades anónimas desportivas?
No já mencionado debate ocorrido ainda nos anos 90, em plena Assembleia da República, o deputado Pedro Baptista defendeu a proposta do governo referindo que "se, por acaso, os clubes pudessem entrar com mais de 40% (...), ou seja, se os clubes pudessem controlar directamente a sociedade desportiva, iríamos ter exactamente uma repetição dos mesmos erros de gestão que foram enterrando o futebol português", acrescentando sem pudor que "o futebol precisa de dinheiro fresco".
Infelizmente se boas intenções existiam nas palavras do deputado, o tempo encarregou-se de as refrear.
A entrada da "sociedade em geral" para as sociedades anónimas desportivas não se deu. A consulta do documento publicado pela FPF sobre as estruturas accionistas das várias SAD que competem nas principais provas nacionais. São accionistas maioritários de sociedades do âmbito das provas profissionais entidades tão desconhecidas como a Lalgy & Sidat, Lda (75% da SAD do Amora), Livesoccer Company Limited (90% da SAD da Oliveirense), Decifraglórias, Lda (65% da SAD da Sanjoanense), Hope Football Europe Unipessoal Lda (80% da SAD do Tondela), Lleon Group SA (70% da SAD do CD Fátima), Huang Jin Yi Sport, SA (87% da SAD do Cova da Piedade), Galaxy Believers (89,7% da SAD do Desportivo das Aves), Tavistock Global Resource, Ltd (70% da SAD do Feirense), Estoril Holding LP, composta por um conjunto de outras empresas (75,65% da SAD do Estoril Praia), Quantum Pacifi Management Limited (85% da SAD do Famalicão), Seca Incorporate Hong Kong Ltd (80% da SAD do Vizela), Gradual Score SA (90% da SAD do Penafiel), Playfair Lda (56,3% da SAD do Leixões), DP SGPS Unipessoal Lda (90% da SAD do Lusitano de Évora), Codecity Sports Managment Lda (51,96% da B-SAD) e a For Gool Company (85,88% da SAD do Portimonense).
A lei das SAD precisa de revisão urgente e os pontos fundamentais a alterar passam por um escrutínio rigoroso dos "investidores" e da origem do seu capital bem como de eventuais conflitos de interesses que possam transportar para o contexto da competição; pela exigência, ou pelo menos pela possibilidade, dos clubes controlarem 50%+1 das acções da sociedade; pela possibilidade de reversão mandatória dos negócios de perda de posição maioritária por parte do Clube; e por regras sancionatórias que moralizem a actividade dos "investidores" que hoje actuam com rédea solta.
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