Jornais



A minha relação com os jornais não é diferente daquela que tiveram muitas pessoas da minha geração, ou daquelas que a precederam. Nasci e cresci num tempo sem internet e isso significava menos imediatismo na produção e no "consumo" de notícias. Os jornais saiam de manhã ou à tarde, por vezes tinham duas edições, mas não disparavam notícias todo o dia, a torto e a direito, num género de corrida desenfreada pelo pódio da rapidez na difusão de uma informação irrelevante, cujo interesse público se perde quase imediatamente ou, pior, nunca existiu.
Durante anos fui leitor diário de jornais, em papel naturalmente. Nos desportivos comprei sempre "A Bola" - antes apenas a Gazeta dos Desportos, por ser uma publicação bem mais eclética - e nos outros, generalistas, cresci com o Público, o DN, o Expresso e o JN nas minhas idas ao norte. Imprensa regional pouca, porque quem nasce e cresce em Lisboa tem nos jornais de grande tiragem a sua própria imprensa local. Ah, e o Avante!, claro.
Quando cheguei à Universidade ganhei o hábito de ler o "Tal & Qual", por causa dos textos o Mário Castrim, que estava para a crítica televisiva como o Homero Serpa para a análise do país desportivo. Não era rara chegar à escola com dois ou três jornais do dia, que lia quase sempre de fui a pavio, numa altura em que o "telemóvel" ainda não era "smart", apenas uma versão portátil e em tamanho cómodo do telefone caseiro.
É certo que a internet, os portais noticiosos, os blogues e depois, mais tarde, as redes sociais vieram alterar radicalmente o mundo da imprensa escrita. Mudaram os leitores, os jornalistas, as notícias, os jornais e os meios digitais ao dispor do jornalismo. Mudaram igualmente as empresas detentoras dos principais títulos nacionais e regionais, também dos internacionais lá fora, que por cá não temos grandezas desse calibre. E mudou o compromisso dos jornais com os seus leitores.
Na era do hiperconsumo a informação consumida passou a adoptar um lado estético que contribui para a construção da imagem - e da autoimagem - do consumidor de notícias. Ler e difundir notícias de determinada publicação, ou sobre dada temática, é parte da construção de uma imagem (e de uma autoimagem) pública que o Homem aprendeu a manejar com variável perícia. Os jornais compreenderam-no e passaram a servir peças destinadas a servir esse propósito: desprovidas de conteúdo mas ricas em ornamentação.
As principais publicações criaram encartes - primeiro em papel e depois digitais - que reforçam a sua dimensão de entretenimento. Nesses encartes passaram a incluir conteúdos que dificilmente poderão ser lidos e analisados como peças de jornalismo. Alguns são "patrocinados", que é uma maneira polida de denominar textos, imagens e convites ao consumo que são pagos por terceiros - como publicidade - para que fiquem misturados com o conteúdo noticioso produzido para jornais, por jornalistas. Este processo foi tornando cada vez mais difícil ara o leitor comum destrinçar o que é material noticioso daquilo que é pago para promover ideias, produtos, personalidades e/ou agendas.

Em alguns domínios mais específicos - no desportivo, por exemplo - o jornalismo deixou de olhar para a floresta e passou a concentrar-se nas suas árvores sagradas. Numa lógica de segmentação do mercado de consumidores identificou nos seguidores desses árvores o público-alvo capaz de lhe garantir o retorno financeiro esperado. Nos jornais generalistas passou-se um processo semelhante, mas de âmbito político (passaram a ser um género de folhas informativas e opinativas do situacionismo), económico-financeiro e geográfico.

Em determinado momento, a confusão entre grupos económicos e imprensa, entre poderes instalados e colunistas, e entre receitas e publicidade foi tão grande e tão evidente que o elo mais fraco deste cenário passou a ser o leitor individual. Um pouco como aconteceu nos clubes transformados em "SAD", que transformaram o sócio em cliente para depois se concentrarem nas reais fontes de financiamento das suas operações: as receitas televisivas. Erro crasso. Relações de confiança ganhas ao longo de décadas foram abandonadas de forma bem mais acelerada.

A crise económica que emerge do cenário pandémico "Covid-19" prova-o. Os jornais mais antigos tremem financeiramente e os "perdócios" (assim chamava Belmiro de Azevedo ao "Público", que foi mantendo ao longo de anos e anos de resultados negativos) aparentemente mais sólidos - aqueles que durante anos se borrifaram nos leitores e nos valores da objetividade, mais até do que na isenção - apelam agora ao "sentido cívico" daqueles que passaram a querer como "assinantes", em defesa de um "jornalismo independente e plural" que verdadeiramente custa a identificar.

Foram décadas de uma repugnante porta giratória entre o jornalismo e o mundo político e empresarial. Foram décadas de relações nebulosas que sujaram a imagem dos jornais e, infelizmente, de boa parte dos profissionais que nunca participaram (nem nunca beneficiaram) do pântano junto ao qual foram laborando.

Não creio que o jornalismo possa e deva ser substituído pela esquizofrenia da informação despejada nas "redes sociais". Mas o jornalismo deve fazer uma profunda auto-crítica antes de pedir ajuda. Sem essa análise dos erros próprios, a começar pela quebra do compromisso com os leitores, não me parece legítimo que coloquem nas mãos dos leitores a responsabilidade da sobrevivência das diversas publicações que lutam agora contra um novo e poderoso obstáculo.

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