O treinador anarquista
Fernando Pessoa era um reaccionário apesar de se afirmar ao contrário. Na sua célebre nota autobiográfica descreveu-se como "conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservadorismo, e absolutamente antireacionário". Se obra antireacionária escreveu essa obra terá sido "O Banqueiro Anarquista", a história de um homem que se liberta das contingências materiais limitadoras da liberdade tornando-se muito rico.
Por vezes lembro-me do banqueiro pessoano quando oiço, vejo ou leio declarações de Jurgen Klopp, o treinador do Liverpool que se define como "de esquerda", embora o seu entendimento acerca do que é ser-se "de esquerda" possa não ser exactamente o mesmo que o meu.
Klopp é muitíssimo bem pago. Já o era antes de rumar ao Liverpool e parece-me lógico que tenha melhorado as suas condições contratuais quando chegou a Inglaterra. Depois fartou-se de ganhar e sobretudo de proporcionar bons jogos aos adeptos do Clube e do jogo. Em certo sentido trabalhou para se libertar das contingências de que falava o banqueiro de Pessoa. Hoje vive sem carências nem preocupações materiais, e o estatuto que alçançou permite-lhe ser num meio fundamentalmente reaccionário e capitalista um género de personagem exótico com opiniões "radicais" que quase todos toleram com condescendência.
Talvez Klopp devesse ser levado mais a sério pelos "homens do futebol". Talvez Klopp tenha acerca do jogo e do seu lugar na vida das comunidades uma visão mais esclarecida e limpa. De resto não são muitos os treinadores de topo que se referem ao jogo como um jogo e não como um produto ou mercadoria. Klopp não hesita em fazê-lo. Como o anarquista de Pessoa, Klopp dedica-se frequentemente a um género de "sátira dialéctica", sublinhando os paradoxos e o absurdo que participam activamente na propulsão do "futebol como indústria".
As suas declarações no contexto da pandemia que vivemos não se afastam daquelas que outros protagonizaram. O que o torna diferente é o facto de que se refere ao futebol como "apenas um jogo" há já muito tempo. Talvez por isso seja tão fã de Klopp como sou de Bielsa e fui de Brian Clough.
Comentários
Enviar um comentário