O melhor dos dois mundos

Sou sócio do Belenenses e pago religiosamente as minhas quotas todos os meses. Aliás, pago as minhas e as dos meus dois filhos menores. Faço-o por "débito directo" porque sei que de outra forma deixarei acumular dívida ao Clube e de pagá-la poderá ser um esforço maior do que posso suportar. Já aconteceu no passado. Não questiono o pagamento de quotas no período da quarentena tal como não o faço durante os meses normais de interrupção das competições. Sou "dono do Clube", tenho direitos e deveres. E um dos deveres é contribuir financeiramente para a sua saúde e sustentabilidade.
Ser sócio, no sentido associativo do termo, é muitíssimo diferente de ser "cliente". Os clubes não são sociedades comerciais, nem nada que se pareça. A nossa tradição é associativa, de base local. Todo o edifício desportivo português assenta nos clubes de base associativa, ao contrário do que acontece noutros países, alguns dos quais de grande relevância no contexto internacional.
Nos Estados Unidos da América, por exemplo, a formação desportiva encontra-se em larga medida dependente do desporto escolar e universitário. Nas divisões competitivas mais relevantes não são clubes mas antes "franchises" que competem.
Em Inglaterra, a pátria de uma série de modalidades hoje disseminadas e praticadas em todos os cantos do planeta, a tradição associativa não entra nas competições profissionais - no futebol e nos dois formatos de rugby profissional, o "union" e o "league" - e desde há mais de 100 anos que as principais equipas participantes nas várias divisões profissionais de futebol são parte de emblemas privatizados, conceito que emergiu na última década do século XIX, varrendo o formato de gestão democrática dos Clubes de base associativa "para as margens" do sistema [1].
Os associados tornaram-se "fãs" e depois de Hillsborough (1989) foram progressivamente transformados em clientes, num processo de gentrificação do jogo e das bancadas que levantou e levanta resistência, mas que alterou de forma profunda o jogo - em sentido lato - e a sua presença nas comunidades operários que durante quase 100 anos lhe deram vida, alento, paixão e... dinheiro.
O relatório Taylor foi instrumental na introdução de alterações na competição profissional de futebol em Inglaterra (e no mundo). Em 1992, pouco depois daquela terrível tarde de sol emSheffield, os clubes de topo do futebol inglês - cinco deles em particular [2] - formam a "Premier League", clube restrito de emblemas em fase acelerada de engorda. Sucedem-se as compras e vendas de posições accionistas, com a chegada progressiva de "investidores" de outras paragens. Cada caso de "sucesso" financeiro e desportivo passa a encontrar correspondência em vários outros de bancarrota e destruição de emblemas orgulhosos representantes de cidades, bairros e núcleos apaixonados de "fanatics".
Praticamente 30 anos depois pouco ou nada resta da antiga paixão pré-Hillsborough. Mas esse será tema para aprofundar noutra circunstância.
O que neste post me parece essencial enfatizar é a tentativa dos clubes ricos de manter nesta fase de interrupção forçada das competições pelo menos parte das suas receitas, cobrando aos "clientes" com esquema de pagamento por débito um serviço não prestado, num cenário de "lockdown" que deixa várias famílias em sérias dificuldades para fazerem face às despesas familiares regulares.
A promessa de reembolso condicional posterior enfatiza ainda mais que os pagamentos regulares dos adeptos transformados em clientes funcionam nesta fase para os Clubes cobradores como empréstimos sem juros. E revelam uma total e absoluta falta de sensibilidade do futebol-negócio face às imensas consequências individuais e colectivas do cenário pandémico actual.
O futebol-negócio quer para si o melhor dos dois mundos: as receitas de natureza "associativa" por um lado e a rédea livre para a especulação, o poder absoluto e a acumulação capitalista por outro.
Notas:
[1] Mais informação no capítulo "In the beginning" de "Punk Football. the rise of fan ownership in english football" (2014), de Jim Keoghan.
[2] Arsenal, Tottenham, Manchester United, Everton e Liverpool.
[imagem: BEN MCKEOWN]
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